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O patrimônio rural como fator de desenvolvimento


Pesquisa mostrando como se formou Jaguariúna pode contribuir com o poder público





Em várias regiões do país, a gestão inteligente dos recursos patrimoniais tem sido fator-chave para promover o desenvolvimento local a partir de empreendimentos sustentáveis, dinamizando a economia, criando postos de trabalho e elevando a autoestima da comunidade. É este o mote das pesquisas em “planejamento, patrimônio e paisagem” realizadas há quase 20 anos pelo Laboratório de Empreendimentos (Labore) da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC). A proposta é valorizar o patrimônio rural (a comunidade, a cultura e o território) e assim atrair investimentos em planejamento regional.


Foi pelo Labore que o arquiteto Roberto José D’Alessandro apresentou dissertação de mestrado mostrando o processo de conformação do território de Jaguariúna (SP), sob a orientação do professor André Munhoz de Argollo Ferrão, que coordena este grupo de pesquisa. É um trabalho de fôlego que pode contribuir com o poder público municipal na preservação do patrimônio histórico e dos recursos ambientais, e mais ainda diante da importância turística da cidade: considerada portal do chamado Circuito das Águas Paulistas, ela antecede as estâncias hidrominerais de Pedreira, Amparo, Serra Negra, Monte Alegre do Sul, Lindóia e Socorro.


“O território de Jaguariúna já abrigava alguns assentamentos humanos desde 9000 a.C., conforme registros arqueológicos, e depois vieram os registros do século 18 sobre os bandeirantes colonizadores”, afirma Roberto D’Alessandro. “Esta ocupação desde os primórdios, passando pelos índios e colonos até os dias de hoje, deu-se naturalmente por que Jaguariúna fica na confluência de dois rios importantes; as pessoas sempre buscaram água e solo fértil para se assentar”, complementa André Ferrão.


De acordo com o autor da tese, daquilo que antes era uma enorme sesmaria originaram-se fazendas situadas às margens dos rios Jaguari e Camanducaia, que produziram cana-de-açúcar e depois café entre o século 19 e início do século 20. “Tão importante quanto os rios e as fazendas como vetores de ordenação territorial de Jaguariúna foi a ferrovia. Por isso, minha dissertação abrange o período que vai da instalação da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro em 1875 – com um ramal saindo de Campinas e chegando à estação de Jaguari – até a instalação da iluminação elétrica em 1913.”


As quatro principais fazendas levantadas por D’Alessandro foram a de Jaguari (hoje Santa Úrsula), da Barra, Santa Francisca do Camanducaia e Serrinha. Como objeto de estudo foi escolhida a fazenda da Barra, entendida como uma unidade agrícola fabril voltada à agricultura, com edificações e obras civis para abrigar e desenvolver as etapas de produção e manutenção de seu complexo. “Parte dela foi adquirida pelo município de Jaguariúna em 2008, com a casa sede, as instalações fabris, o aqueduto e 16 alqueires de entorno. A propriedade produziu até a década de 1990, embora já não fosse a mesma, pois começou a ser dividida a partir de 1932”.


A fazenda estudada fica bem próxima ao rio Camanducaia, havendo uma interação que é evidente também nas demais, o que é ressaltado pelo arquiteto. “Esse tipo de construção não funcionaria sem o rio. Na fazenda da Barra, uma peculiaridade é que o fluxo de água está atualmente cortado, mas se o fornecimento fosse restabelecido, a área de produção do café voltaria a funcionar em 80%, graças ao sistema de canalização. E teríamos ali uma bela aula sobre a água como força motriz daquela indústria agrícola.”


O professor André Ferrão explica que a água era captada no ribeirão Camanducaia Mirim (afluente do rio Camanducaia) e transportada até um aqueduto, descendo por canais e canaletas para irrigar os terreiros e movimentar máquinas de transporte de grãos. “Tudo isso por gravidade, o que é bonito do ponto de vista da engenharia. Toda essa estrutura de produção vem sendo restaurada, bem como a casa sede, numa iniciativa interessante do município para devolver este patrimônio à população.”


ATUAÇÃO IN LOCO


Roberto D’Alessandro participou do restauro da fazenda da Barra como arquiteto residente na obra e integrante da equipe técnica do Departamento de Patrimônio Histórico de Jaguariúna, dirigido pela arquiteta Rosana Tavares. Ele fez o levantamento in loco (medições do complexo) que serviu de base para o projeto de restauro. “É uma cidade pequena, com recursos reduzidos, mas que conseguiu movimentar um departamento específico visando este projeto. Apesar da carência também de recursos humanos, nos empenhamos para realizar ao menos o inventário básico das edificações nas áreas rurais”.


O autor da tese participou ainda da recuperação da estação de Guedes, construída dentro da fazenda da Barra e que agora foi transformada em centro cultural, oferecendo cursos e várias outras atividades. “Na verdade, existem duas estações, a primeira do final do século 19, que virou um sítio dos proprietários, e a segunda, que nesta gestão de Rosana Tavares foi restaurada integralmente. Resgatou-se um edifício relevante não apenas para a cultura do café, mas para a população de um bairro que surgiu em função da fazenda e da ferrovia.”


Para André Ferrão, a nova estação de Guedes ajudou a reintegrar à cidade um bairro antigo que estava esquecido e começava a ficar carente de serviços e lazer. “Este trabalho é uma demonstração que o tipo de pesquisa feito pelo grupo do Labore acaba tendo uma aplicação muito prática em termos de desenvolvimento local, da sustentabilidade e da questão ambiental. É um método que continuamos levando a outras regiões, aonde vem ganhando importância para a área de planejamento.”


Roberto D’Alessandro esclarece que a abordagem consiste na análise dos processos produtivos e culturais a partir de um mapeamento em quatro níveis: do território do município, da área da fazenda, da sede e das edificações voltadas à produção. “É possível observar como a comunidade recorre a determinada tecnologia em um período específico e como esta população vai se modificar e se organizar para produzir os seus bens utilizando os recursos naturais. O mapeamento chega ao nível das matas, hortas e nascentes, o que é fundamental para o planejamento de uma cidade inserida no circuito turístico. Talvez seja este o aspecto mais relevante da dissertação.”




A origem de Jaguariúna


Constituída como município em 1953, Jaguariúna possui hoje 44 mil habitantes e um território de 142 quilômetros quadrados. A presença em perímetro relativamente pequeno de dois rios importantes, que vão formar o rio Piracicaba e contribuir para o abastecimento do sistema Cantareira, torna a cidade privilegiada em termos de recursos hídricos. Na opinião de Roberto D’Alessandro, isso justifica a realização da sua pesquisa no âmbito do Departamento de Recursos Hídricos, Energéticos e Ambientais da FEC.


O pesquisador conta que a origem de Jaguariúna é a Vila Bueno, núcleo surgido em 1895. Mais atrás no tempo está a fazenda Santa Francisca do Camanducaia, com registro de construção em 1830, em terras separadas da vizinha Santa Úrsula pelo rio Jaguari. A Santa Francisca foi desmembrada e coube a um dos herdeiros, o coronel Amâncio Bueno, a gleba batizada de fazenda Florianópolis e rebatizada de Serrinha.



“Foi em 1895 que o coronel Bueno procurou o engenheiro William Giesbrecht, responsável pela instalação da Companhia Mogiana na região, pedindo uma planta para o loteamento da herança”, recorda D’Alessandro. “É interessante notar o misto de áreas urbanas e outras ainda rurais, sendo que o núcleo de Vila Bueno, cujo marco é a Igreja de Santa Maria, continua perfeitamente identificável. Atualmente a fazenda é um condomínio, assim como a matriz Santa Francisca. Recentemente, soubemos que a Santa Úrsula foi vendida e provavelmente terá o mesmo destino.” O professor André Ferrão, orientador da dissertação, afirma que os condomínios são uma grande preocupação da comunidade de Jaguariúna. “Esta preocupação chegava ao Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo], onde eu representei a Unicamp até o final do ano passado. Os empreendimentos são criados sem a preservação do patrimônio e, por vezes, também da paisagem. No período da pesquisa foi criado em Jaguariúna um conselho municipal de defesa do patrimônio histórico. A sociedade passou a ampliar sua luta pela defesa dos valores locais, tanto culturais como ambientais.”


MORADORES ILUSTRES


A fazenda da Barra, que foi em parte adquirida e restaurada pelo município de Jaguariúna, pertenceu a Bernardo Guedes Barreto, filho de Barreto Leme (fundador de Campinas). José Guedes de Sousa, Barão de Pirapitingui (bisneto de Barreto Leme), herdou a propriedade e ali residiu até 1897, quando mudou para um palacete construído por Ramos de Azevedo em São Paulo. E para a fazenda mudou seu filho, o coronel José Alves Guedes.


Entre os filhos do Barão Pirapitingui é importante salientar a figura de dona Olívia Guedes Penteado, incentivadora do modernismo e amiga de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Heitor Villa-Lobos. Ela era tia de Yolanda Penteado, mecenas que idealizou a 1ª Bienal de Artes Plásticas em São Paulo ao lado do marido Francisco Matarazzo Sobrinho (Ciccillo). Dona Olívia contribuiu para a Revolução de 32 e também ajudou a fazer da médica Carlota Pereira Queirós a primeira mulher a votar e a ser eleita deputada federal em 1934.